Joao Conde Veiga
Antes de abordar a personalidade lembrada do nosso centenário deixem-me ficar duas notas de caracter pessoal na abordagem do tema: uma do sangue, outra da terra. Os meus antepassados, por tradição aprendida na família, vieram da terra galega procurar depois do rio Minho melhor sustento. Foram-se fixar na zona de Coimbra, onde a notabilidade de um dos primeiros descendentes (foi Adelino Veiga, poeta e operário) deu nome a uma das ruas mais movimentadas e comerciais de Coimbra: a que vai entre o Largo das Ameias e a Praça Velha, onde precisamente se situava a sua oficina de caldeireiro.
Primeiro o sangue, e o seu chamado, depois atracção da terra e o seu encantamento. Enquanto vivi em Viana do Castelo ia a Tuy, quase ali ao lado, como quem faz uma viagem a casa. Nas ruas, na catedral, num restaurante que se chamava do cavalo furado, tendia a ver naqueles meus iguais, não uma máquina coberta com um capote, como Descartes via os seus semelhantes pelos vidros da sua janela, ou com a marioneta em que Kant os concebia, movidos a invisíveis fios desiguais dos nossos. Víamo-nos uns aos outros: e os outros me pareciam iguais.
Do correr do rio, vinham-me quase sempre à lembrança as palavras, impressas a ferro nos recantos da alma e que tinham sido escritas num livro de D. António da Costa:
Sabe-se que o rio Minho é a raia que separa Portugal da Galiza. À seriedade da natureza acresce não sei que pensamento solene ao irmos seguindo por entre os dois reinos. À esquerda sempre a nossa margem, a margem portuguesa, nós; à direita sempre a margem estrangeira, a margem espanhola, eles. Eu bem sei que a Natureza criou a humanidade una, e não criou nações, que por isso o rio Minho não está obrigado por natureza a ter portuguesa uma das margens e a outra espanhola, e apesar disso o viajante vai-se impressionando mais com a margem direita examinando se as culturas são as mesmas, se os rebanhos se parecem com os nossos, se as árvores são de outro feitio, se os Galegos são homens diferentes.[António da Costa (1936). No Minho, Porto].
Mais tarde comparei muitas vezes a descrição de escritores de um lado e outro do rio para ver como nos víamos uns aos outros. Retirei da condição da aventura um motivo comum: lá e cá do mar. Detectei a benevolência com que nós, galegos e portugueses (deixem que vos diga antes: galaico-portugueses) nos víamos à semelhança de ambos.
Escolhi dois textos dessa visão: o texto português devo-o a Fernando Assis Pacheco, amigo de juventude, companheiro das primeiras loucuras de publicação, jornalista tão prematuramente desaparecido. Curiosamente, um elemento comum com o segundo texto: a profusão de personagens que habitam as páginas do livro fazem lembrar as estafúrdias denominações de Camilo José, que citarei a seguir. Tirei a ideia do seu livro que tem nome próprio, Benito Prada, que era de Casamundo, lugar imaginário (de uma casa no mundo) “da Galiza, da província de Ourense e que veio a Portugal ganhar a vida”. Muito determinado:
Quem há-de ir a Portugal para o ano sou eu. De afiador (profissão paterna) não. Arranjo um trabalho fixo. [Fernando Assis Pacheco (1997). Trabalhos e paixões de Benito Prada, Lxª Tv guia, ed.].
O trabalho fixo era afinal itinerante: andar pelas feiras a vender tecidos.
Nesse livro de 1993 (reeditado em 1997) Assis descrevia o seu transito:
Os galegos, que enxameavam Portugal desde sempre, tinham aumentado com o século. Havia-os em toda a parte, a vila mais pequena nos confins de qualquer província, podia encontrar o seu pontevedrino de guardanapo debaixo do braço direito servindo à mesa de um restaurante, ou o seu serrano estabelecido com um comércio de desenvolvimento lento e próspero. (p.77).
Também Benito Prada se estabeleceu em Coimbra, a meio das Escadas de S.Tiago, junto à Igreja da mesma invocação.
Eram os galegos, eram os portugueses, quase unidos pela origem comum da língua, com um destino viajeiro e erradio, que se deslocavam de um lado para outro do rio Minho, como se o rio não fosse um obstáculo artificialmente ali criado, mas apenas um ténue fio que se ultrapassava a salto de cobra.
Uns e outros tinham também um comum destino: serem exilados, uns por demasiada centralização, outros por demasiada periferia, tanto nas próprias terras, como nas terras alheias. Ali lhes nascia o distanciamento, que fazia amar mais a lembrança do campanário da sua aldeia, e a morrinha, que em galego terá o significado de ir morrendo lentamente até conseguir voltar, e no indefinível português da saudade, paradoxal “travo doce de infelice”, o bem perdido, o bem desejado de nunca ser e estar onde estar. As saudades não são apenas a lembrança que não volta: o desejo de um futuro que se quer. É neste desejo de futuro é Portugal independente há mais de cinco séculos.
Esses desenraizados não seguiam só de norte para sul à procura de melhor vida: vinham de sul para norte com igual intento.
Camilo José Cela (o vosso Camilo, que nós temos outro: Camilo Castelo Branco) descreveu um andarilho português em terras da Galiza, acentuando decerto o poder de adaptação de um homem de sete ofícios: (trata-se de um artigo inserido no ABC de Madrid, na colaboração El color de la mañana, que traduzo:
Desde menino admirava muito um homem orquestra que às vezes passava por Padron e que aparecia na aldeia a tocar a harmónica, a bandurra, o tambor, o bombo, os pratos, e não sei se mais algum instrumento, todos a tempo e com muita harmonia, medida e eficácia: a minha avó submeteu-me a uma discreta vigilância durante algum tempo, com medo de me poder escapar com ele para correr a aventura de ver mundo. O homem orquestra da minha infância chamava-se Lourencinho Mogadouro Remondes, aliás Capeludo, que não se lhe poder chamar assim, porque entrava em fúria, quero dizer que se chateava, ostentava uns grandes bigodes de domador de tigres e enfeitava a casaca com diversas condecorações; o que melhor tocava don Lourencinho eram marchas militares e passodobles taurinos, mas também tangos e fados, com algum esmero quando os tocava, sempre a pedido, deixando de lado a harmónica, para poder cantar, pois para expressar bem o sentimento não há como a voz. [ABC, Madrid, publicado em 4 de Março de 1995, p.15.].
Por princípio
Galegos e portugueses, nem todos, por nascimento, cultura e evolução pertencem ao esreótipo viajeiro, sem eira nem beira, vivido à aventura. Mas, decerto pelos mesmos motivos, ou têm sido exilados em terra própria, ou em terra alheia. Quando não, muito lá longe, se encontram melhor nas fronteiras do Uruguai, da Argentina, do Brasil.
Acontece muitas vezes a intelectuais pertencentes a uma classe alta serem mais tolerantes que os povos, mas fazendo de alguma superioridade intelectual uma sabedoria que não se quer impor a não ser por si mesma, mas pretendem melhor o entendimento dos homens. Quando os princípios são humanos os resultados tornam-se naturalmente humanistas.
O nosso versado de hoje, Plácido Castro, tendo estudado longe, em Inglaterra, que é um lugar onde a relva e a democracia são cultivadas há uns centos de anos, formou uma convicção de uma civilidade e tolerância que fizeram a sua diferença. Embora as brumas vindas do Norte e o fog de Londres quase tapem o sol, e sejam diferentes das últimas claridades deste occidens onde o sol morre, ali fica, mesmo ao lado, a verde Irlanda, que é verde como o Minho e a Galiza, e que pode trazer igual lirismo celta, igual àquele que anda pela cerva dos montes e dentro de nós na língua poética que primeiro bebemos nos claros regatos de água vinda da fonte.
Com a leitura de Chesterton parece Plácido ter encontrado o gosto conservador crítico da tradição, e um caminho seguro para a evolução, entre dois valores em que situa, tanto os seus paradoxos, como as suas perplexidades. Um exemplo apenas do seu trato: as repúblicas da África do Sul e da India, de base colonial britânica terem em Commonwealth, um rei por soberano. Com estas experiências à vista, o seu pensamento voava decerto para uma solução para vertebrar Espanha.
O seu estudo em Glasgow, e a sua estadia em Londres, vão transforma-lo primeiro em observador, depois em analista, por fim em jornalista. No que parece ser uma sina de exilado, quando existe um certo número de características, e uma grande saudade da terra: Eça de Queiroz, do seu exílio diplomático inglês e francês, escreve as Cartas de Londres e os Ecos de Paris; num sentimento parecido manda, em 1927, as prosas distantes para o Informaciones, de Madrid, e para El Pueblo Gallego de Vigo. Chamar-lhes-à Nossas Crónicas de Londres.
O distanciamento aguça não só o impulso de informar: mas também o sentimento longe de estar na terra, sob a forma de lembrança, de morriña ou de saudade, misturar a ideia de ser com estar, num sentimento de ter saudades em vez de ser saudade, o que a torna quase indefinível.
Nas suas análises de democracia de longe, vindas para a lembrança da sua terra, procura, desde logo, um ponto de vista equidistante, ressalvada a oposição para com o sistema soviético nascente, que repudia incessantemente.
Tornado liberal por educação inglesa, e democrata por comparação de idéias, adere às posições republicanas espanholas pela via do nacionalismo galego. Pondo sempre a nota do centralismo de Madrid ser “uma colonização espiritual e económica”. Mas outros, melhor que nós, falarão outros desta sua característica política.
Republicano, portanto, no contexto espanhol, mas galego de raiz e pensamento, é neste outro paradoxo político que alguns vão tirar os motivos de alguma perseguição política de militares autoritários, que se traduzem em atitudes: quando lhes falavam em cultura, puxavam pela pistola gritando “viva la muerte”. Assim mesmo: para todos os autoritarismos que sejam de raiz militar, os intelectuais são sempre para desconfiar: o pensamento não se controla do mesmo modo que umas tantas ordens ditadas em parada. Deste modo, logo nos princípios da Guerra Civil que começa em Julho de 1936, Plácido, intelectual e galego, é perseguido, é condenado por um tribunal curiosamente designado de responsabilidades políticas em multa e desterro, o que vai tornar irrespirável o ar da sua terra natal, e, mais tarde, a ida para longe que se tornará mais lembrada que vivida.
Intelectual no exílio
O post-guerra franquista tinha-se tornado difícil para espíritos independentes. Mas Plácido ainda o respirou durante algum tempo exilando-se sobre si mesmo e convivendo quase em segredo como amigos. Em 1949 segue para Lisboa, sítio do mais neutro dos autoritarismos, e que tinha vivido o post-guerra vindo das influências entre anglófilos e germanófilos, que era problema que em Espanha não se colocava, quase por exclusão de termos. Vai viver no mesmo Estoril que se tinha tornado terra adoptiva de outro exilado, este agora não republicano, mas monárquico, pretendente à coroa espanhola: D.Juan de Bourbon; e no mesmo Estoril em que Ortega y Gasset procura refúgio intelectual. De uma ou outra forma, aí está na rota de milhares e milhares de foragidos que, poucos anos antes, tinham rumado a Inglaterra para, muitas vezes, saltarem para o outro lado do Atlântico. Em Londres vive a sua vida: exerce a sua profissão de jornalista aos microfones da B.B.C.
A passagem por Lisboa tinha-lhe permitido contactos, e garantido a publicação em letra de forma das palavras que ia lançar para o éter, que nele se dissolviam, e que não fariam outro eco: garante a publicação dos seus escritos, traduzidos, se é possível dizer assim, do galego para o português, num jornal do Porto, o Jornal de Notícias. O título genérico dos artigos não desmente a sua proveniência radiofónica: Aqui Londres. O seu conteúdo reflecte o seu ponto de vista da vida inglesa que ia observando.
Gesto radiofónico
A edição era feita em língua galega, o que se torna um acto de propaganda subtil para uma língua que era remetida a uma condição oral, quase clandestina, e que aproveitava as novas potencialidades da rádio. Durante essa guerra de 1939 foi o aproveitamento do novo meio radiofónico em expansão, que como outras armas guerreiras tinha sido experimentada na guerra civil espanhola, com mais ou menos eficácia, por ambos os bandos, que vai permitir, mais que avanços estratégicos no território, ou como factor de resistência, ou para “ganhar almas” e criar ambientes de tomada ou manutenção política do poder. Com uma diferença que Plácido vai encontrar: depois da guerra, em 1945, assuntos tratados não eram os da política comum, que fizessem proselitismo desta ou daquela posição. Havia um distanciamento cultural: os programas eram apenas de rádio e a sua programática as da observação de uma visão galega do mundo dissolvidas nas ondas da rádio transmitida para esse mundo.
Características dos programas: tinham uma duração média de sete a oito minutos, chegando algumas vezes a dez ou doze, e a sua emissão era nocturna, a partir das vinte e uma horas. A periodicidade era semanal, com repetição noutro dia diferente do da sua emissão. Foi “o primeiro programa galego no mundo da radiofusão”. E teve, no seu meio, e no seu tempo de emissão, um papel comparável ao surto da edição, em língua galega, que teve lugar, a partir desta altura, do lado de lá do mar, onde se situavam as maiores comunidades lingüísticas da fala: Santiago do Chile e Buenos Aires, que mais pareceram então uma Galiza lá longe.
A falar galego, na língua franca do seu povo, escrita no exílio, era um acto de rebelião contra o centralismo castelhano instituído, na sua imposição oficiosa do castelhano, e na sua proibição do uso da língua ancestral da Galiza.
Tínhamos, por outro lado, a sua difusão radiofónica passar por cima da informação escrita. A censura do lado de cá do rio era certamente mais branda, mas igualmente impeditiva da expressão. Era perigoso, quase impensável publicar, mesmo clandestinamente, jornais clandestinos na língua materna. Português e galego, vindos da mesma matriz galaica e portuguesa de uma poesia quase céltica, pareciam ter destinos diferentes: uma ia por esse mundo além e era língua franca em que diversos povos e raças se entendiam; a outra era reprimida na sua terra de origem, e só muito longe, para o lado de lá do mar, era livremente falada.
Conteúdo dos artigos
Consideramos estas intervenções como artigos escritos para serem lidos: palestras. Nada melhor, portanto, que os adequar a meio escrito e publicá-los em jornal. Depois, não só traduzi-los em castelhano, como foi fazendo para alguns jornais do espaço espanhol. Mas não os podendo publicar ali na língua galaica, ao menos que os traduzissem em português. Escreve-os no Jornal de Notícias, deste Porto em que também escrevo.
O primeiro artigo conhecido aparece no jornal e data de 15 de Março de 1949, quase cinco anos depois de a guerra civil espanhola ter terminado. Referia-se ao tempo inglês, que era de austeridade, mas com grandes perspectivas de recuperação. Decerto mais que isso: o planeamento, herdado das operações militares ia-se em larga escala transformado em planeamento social. O slogan “lares dignos para os heróis” dos primeiros tempos de post-guerra, tinha-se transformado, ou em propostas democráticas de nivelamento, ou numa nova espécie capitalista de transição para o socialismo. As palavras de ordem eram: nada de privilégios, nivelamento social e planificação económica; os meios de conseguir esses objectivos eram as armas sociais em que se tinham transformado os impostos.
Dois dias depois do primeiro artigo o tema analisa o caminho utópico de uma sociedade sem classes dentro de um ambiente de austeridade. E neste objectivo que analisa uma Inglaterra entre a tradição e a inovação, reformista entre a reacção e uma adaptação a novos tempos.
No meio de tudo salta-lhe o problema da mediocrização social. Citando um tal dr. Joad, publicista inglês daquele tempo em mudança, Plácido parece concordar com a análise feita: “é possível que o critério de distribuir cultura e alargar o campo do bom gosto e tornar (…) acessível, nos leve a um empobrecimento do bom gosto, que será deplorável, ou segundo o que cada um pensa da justiça social como o maior de todos os bens”.
Para o fim deste mês de Março (a 24) já não é a dialética inglesa entre a tradição e a inovação que basta: é antes o humor inglês que toma conta da prosa. Perante uma medida tomada pelo governo no domínio dos abastecimentos, nada melhor que uma carta de um paciente cidadão que se propunha abater ao efectivo o próprio Ministro dos Abastecimentos. Mas quando se dirigiu ao ministério com aquela tenebrosa intenção tinha encontrado uma enorme fila de cidadãos que tinham a mesma exacta intenção.
Outro problema, este vindo da área da execução da justiça, era posto (a 26) ao invés: tratava-se de saber, uma vez por todas se cabe ao Estado, para além de deixar os cidadãos à míngua de abastecimentos, de ter o direito de lhes tirar a vida, executando a pena de morte. Mas, para além disso, o que seria muito, o jornalista já se indigna com “o mórbido sensacionalismo que rodeia a aplicação da pena capital”.
Por Abril e Maio é o reacendimento das luzes de Londres, apagadas pelos bombardeamentos primeiro, e depois pela escassez energética, que lhe faz brilhar o olhar e entusiasmar a prosa. É a 21 de Abril que se celebra a volta das luzes à cidade de Londres, com o povo reunido em multidão em Picadilly Circus, em número só comparável à que ali tinha estado a celebrar a rendição da Alemanha em Maio de 1945.
A razão volta de novo sobre a emoção e dá de novo lugar à lucidez de análise quando (a 22 de Abril) faz expressa condenação da politização da ciência, se insurge a propósito da decisão política de um comité de cientistas russos, a sua unanimidade de propósitos, mais a sua transformação, por obra e graça de Estaline, em propaganda do regime de partido único. O jornalista é peremptório: “a loucura é a única explicação possível da atitude russa perante a ciência”.
A 10 de Maio a sua atenção volve-se para o tema da unidade, que se tinha tornado ponte utópica de depois da guerra para que a tragédia não fosse possível outra vez, e para a proliferação nacionalista das antigas colónias, tornada numa espécie de recompensa ao esforço de guerra, na maior parte das vezes sob forma de morte de tropas de assalto, vindas dos territórios coloniais. Os seus propósitos de análise centram-se, naturalmente, no que se passa quanto à Commonwealth. E o problema é posto: perante a grandeza assumida pela União Sul Africana, e a Índia, duas repúblicas declaradas, como seria que a real pessoa do monarca inglês assumiria a realeza de repúblicas?
Dá razões para o sucesso: esta plasticidade monárquica de soluções deve-se certamente ao facto, de ao contrário das democracias continentais, de normas constitucionais fixadas e formais, a política inglesa ser fundada numa legislação mutável e adaptável a todo o tempo. Concluirá que, na Inglaterra, por princípio, a raça e crença não serão factores teóricos de solução, mas ali é muito mais importante uma tolerância partidária, que proporciona todas as experiências cívicas. Ao debruçar-se sobre estes temas britânicos o pensamento decerto que lhe voava para a sua experiência, e para a sua região natal.
Durante o mês de Maio os seus interesses voltam-se para outro tema de grande actualidade. Como se sabe ao governo de coligação nacional que governou a Grã-Bretanha em guerra segue-se uma vitória trabalhista, com Clement Atlee, e o afastamento do artífice da vitória que tinha sido Winston Churchill. A sucessão pode parecer paradoxal mais talvez se justifique: os socialismos parecem historicamente mais adequados a responder a situações sociais de crise: e os cidadãos parece tomarem consciência disto com o seus voto.
Mas a inversa também parece ser verdadeira: a possibilidade do regresso ao poder dos conservadores parece ser indício da volta a uma estabilidade que promove o desenvolvimento e a criação social de riqueza.
Perante as perspectivas de uma mudança política, as atenções de Plácido voltam-se para as eleições municipais, como índice dessa própria viragem. E a preocupação vai para o maior de todos os municípios, Londres, “a nossa Londres”, com escreve. Os temas da preocupação tornam-se também visíveis: relação entre finanças públicas e privadas, diminuição de recursos das classes altas, aumento desmesurado de beneficiários do Estado de Bem Estar, preconizado para o período de post-guerra por Lord Beveridge.
De novo a população inglesa era confrontada com novos problemas e com a medida, radical ou tradicional, de os abordar. É precisamente pelas concepções radicalistas que o predomínio dos trabalhistas tende a decrescer, e a confiança doada depois da guerra para vencer a crise a ser iludida por certos exageros de alguma facção política. Os motivos que se deparam são: a política de nacionalizações, a socialização da indústria, o excessivo intervencionismo estatal, uma direcção muito determinada no sentido da instituição de um regime socialista. Eram rumos que prenunciavam algum descontentamento, fruto dos resultados obtidos, e pareceriam justificar uma “votação de protesto”.
Perante uma tal situação Rio preconiza, já não uma dialética de contrários, mas uma tendência para o equilíbrio. É neste encontro de acção política, “um estado de síntese”, como o designa, que espera “um estado social muito diferente do socialismo”. (artigo de 4 de Junho)
Mudança de rumo
O problema eleitoral inglês jogava-se, nessa altura, para os comentadores políticos, entre resultados muito localizados – municipais – e uma extrapolação antecipada do que seriam as legislativas. As primeiras eram a meio do ano, e as legislativas no fim de 1949: as primeiras funcionavam como um indicador de votação, as segundas um resultado de mudança.
O problema eleitoral jogava-se nessa altura por usura e por erosão: no primeiro caso estica-se demasiado a corda, e põe-se objectivos demasiadamente ideológicos numa fasquia demasiadamente alta; no segundo caso a governação trabalhista não contentava, antes descontentava, mesmo amedrontava, a generalidade do eleitorado inglês.
O estado de post-guerra caracteriza-se por uma planificação geral (planeamento de operações, distribuição por racionamento, ajustamento do esforço industrial de guerra) que do campo militar se estendera à vida civil, para a uniformização absoluta de tratamento, dando pouco lugar à iniciativa. As crises dão-se melhor com os socialistas; o desenvolvimento bastante mais com os conservadores, a menos que, como sucede hoje, as políticas se tenham tornado tão semelhantes, que uns se pareçam mais com os outros.
Rio chama a esta mudança de 1949, pelos motivos que traz um “drama eleitoral” (em 16 de Julho de 1949) representado para e pelo público eleitor, e que vai ter, no guião proposto para os programas eleitorais uma cena final nas nacionalizações estratégicas. É aí que o problema eleitoral se vai resolver.
Mas não só aí: outra questão relevante é saber se um orçamento, com as receitas pagas pelo geral dos contribuintes,podem suportar a despesa e o gasto burocrático exigido pelo vezo intervencionista do Estado socializante. O problema “é saber se o orçamento pode suportar a crescente burocracia exigida pelo quadro intervencionista estatal em quase todas as actividades da nação”.(em 4 de Novembro). Isto num momento em que “os trabalhistas estão em recessão de popularidade devida à sua actuação económica” (em 25 de Novembro)
Análise eleitoral
Nesta transição, entre as finalidades de umas eleições municipais, e as legislativas vindouras, a 10 de Fevereiro de 1950, escreve que a campanha eleitoral decorre tranqüilamente: os eleitores encaram as propostas políticas sem excitação e sem surpresas. No artigo intitulado “Vai começar a luta” o problema coloca-se na redução drástica do tempo de campanha eleitoral a vinte dias, a que adita razões: “o bolso dos candidatos, ou o fundo dos seus partidos não resistiriam a tão prolongada prova”.
Situa depois este tempo de eleições nos seus próprios problemas: a reacção social face às propostas trabalhistas no seu objectivo para a produção estruturante (“não misturar cimentos com política”) e para a grande produção de consumo (“não pôr a mão no açucar”).
Logo a 13 de Fevereiro relata as tendências expressas pelas sondagens: 40 % para cada um dos maiores partidos, 10 % para o fiel da balança liberal. Colocando o problema do voto útil, fica a persuasão para os indecisos e votantes de última hora. Chama a esta tendência de “voto flutuante”, que toma uma feição pragmática face às propostas em jogo.
Face à grande importância destas eleições, uma semana depois (a 20 de Fevereiro) espanta-se com a sua “normalidade excessiva” face à revolucionaridade das propostas: a concepção estatizada de bem estar (Walfare State), o pleno emprego para todos, o rendimento mínimo subsumível, e a proposta de um serviço nacional de saúde.
Há no entanto uma distorção, uma falta de coincidência entre o que os políticos propõem e as necessidades do público geral que os irá sufragar: 27 % dos eleitores preocupam-se muito mais com a habitação, 17 % mais com o custo de vida, 14 % com a segurança do emprego, e apenas 9 % como o peso dos impostos. Destes todos apenas 26 % se interessam pelas propostas ideológicas dos políticos. Pese embora a polemica das nacionalizações dos bens de produção estas eleições decidem-se, como escreve, “em faixa estreita” e a decisão aparece muito centrada: “entre os que escolhem entre um socialismo liberalizado e um conservadorismo liberalizado”. Com a liberalização no centro de atracção.
Nesta conjuntura, com estas possibilidades políticas, irá constatar, com alguma admiração intelectual: “Toda a campanha foi um magnífico tributo à cidadania inglesa, cheia de uma atenção concentrada por parte aos assistentes dos comícios, quase livre de todos os ataques ao adversário no terreno pessoal”. Mais: “O povo britânico, no seu grande campo central de opinião, que é o da maioria do país (…) está profundamente liberalizado até ao fundo da sua consciência”.
Na crónica seguinte (6 de Março de 1950) releva o tema das conseqüências deste equilíbrio eleitoral, numa análise, que, como outras, parece adaptar-se a uma situação actual: “É difícil compreender como um socialismo agressivo iria ganhar mais votos que o trabalhismo moderado, numa contenda cujos resultados demonstraram a oposição da opinião pública a todo o extremismo. Parece nos tempos de hoje: Tony Blair a pôr em prática as idéias liberalizantes de Margareth Tatcher.
Destas análises de Plácido Castro ressaltam, desde logo:
- uma profunda admiração pela democracia;
- uma rejeição liminar pelos extremismos que nela possam ser admitidos;
- um nítido entusiasmo pelos resultados da prática democrática;
- acentuado pela comparação com as notícias que lhe chegam da terra natal;
- uma secreta esperança de que, descrevendo as idéias democráticas, elas naturalmente passassem ao espaço hispânico;
- e não só por elas mesmas, mas no reconhecimento da diversidade galega;
- um distanciamento crítico, e criterioso, de colocar estes seus problemas aos seus ouvintes e leitores;
- na esperança de se tornarem em temas de pensamento e de discussão.
Todos são os problemas da democracia. E de uma entidade democrática a que usamos chamar opinião pública.
Joao Conde Veiga é profesor de Teoría e Historia da Comunicación Social na Universidade Fernando Pessoa de Porto